OPINIÃO: Canto à chuva

5.0.3

Opinião de Rogério Silva

Por dentro da vidraça mostrou-se-me um céu circunspecto. Conheço-o bem. Todos os anos, por esta altura, despede o ar petulante e frívolo com que se mostra no Estio, e revela-se na sua face empenhada de funcionário do tempo, a quem este manda que sobre a terra despeje o que guarda no seu bojo: a chuva abençoada, essa dádiva da vida. Vejo-a através da janela, líquida e cinzenta, oblíqua e fria (à Paul Valéri) e é como se me lavasse os olhos e concedesse nova dimensão aos meus sentidos.

E sinto que oiço, vindo de dentro do mundo, um alvoroço alegre, azáfama festiva de seivas e húmus, que na escrupulosa maternidade da terra fazem germinar os gomos e sementes e intumescer renovos e rebentos, preparando o manto verde e vivaz que em poucos dias cobrirá a seca tristeza que o Estio deixa nas várzeas e cabeços. Dentro em pouco, lavadas e enxutas, as folhas das alfarrobeiras ostentarão o seu brilho sóbrio, enquanto figueiras e amendoeiras se desnudam deitando ao chão o seu folhedo cansado para que o novo encontre o seu lugar quando vierem os frios. Pelos córregos e ribeiras correrá a água dançarina e musical que disputará à passarada o lugar de primeiro instrumentista nos concertos da natureza. Os tordos já cá estão, enegrece a azeitona galeguinha, saem dos cabeceiros as agúdias, e a abastada romã abre, generosa, o tegumento sob que guarda os bagos rubros para que deles se empanturrem quantos papos por ali andem, ruivos, cinzentos, castanhos. Na serra, também as estevas iniciam a mudança de vestimenta e a renovação do perfume, derramando no xisto as folhas grisalhas do passado e abrindo os ramos às novas, mais providas de ládano e aroma, para que o aspirem azinheiras e sobreiros, a murta e a aroeira. Talvez o mar goste mais do Verão. Aqui da minha janela não o vejo. Mas ouço-o ao longe do lado de lá das areias, resfolegando como um avejão prestes a ceder à cólera. E mesmo as águas da ria, que se me mostram aos olhos entre a cortina da chuva, resmungam e barafustam num cachão mal-educado, avesso ao feitio mansinho que é o seu quando é de bonança o tempo. Pois que fiquem em seu desatino as águas soltas, inquietadas pelo vento, esse sopro limpador que transporta vozes e sementes, poeiras e mexericos e faz enviesar a chuva. E deixemos também o vento, que é mais coisa de poetas essa física do ar em movimento. Mar e vento são parceiros que merecem estimação, mas enleio e estremecimento é na chuva que os encontro. Mesmo quando às vezes embrutece e se derrama desvairada e aos golfões sobre campos e casarios, levando nas enxurradas haveres e aflições, julgo que lhe devo agradecer a prontidão no enchimento de barragens e reservatórios e a lição que nos ensina sobre o cretino lançamento de alvenarias em linhas de água e percursos naturais de escoamento em direcção ao mar.

Quando demoram no Inverno a aparecer, para os lados do poente, os rolos encarvoados das nuvens mais aguadeiras, tomam-me a angústia e inquietação de quem se sente privado do consolo de saber que a vida na natureza vai retomar os seus ciclos e que os fantasmas dos desertos se manterão afastados das suas geografias e dos seus medos. Que ela venha sempre, pois, a chuva bendita. Morrinhenta ou copiosa, vertical ou enviesada, fria ou temperadinha, com brisa ou com vendaval, que venha alagar os campos, encher noras e abismos, precipitar-se por ribeiras e regatos, lavar pedras e folhedo, e lançar sobre a natureza o manto verde que guarda nos seus botões promessas de flores e frutos.

Que venha do céu essa bênção, desse céu com ar sisudo de funcionário do tempo.

Rogério Silva

 

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