Novas tarifas abrem guerra no gás natural

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O regulador dos serviços energéticos vai rever as tarifas de gás natural para atenuar os aumentos das faturas do sector industrial.

Sob forte contestação, as tarifas do gás natural vão ser revistas. Como implicavam agravamentos considerados incomportáveis para a indústria – com subidas superiores a 20% em alguns casos -, a consequência da sua aplicação seria desastrosa, afirmam os representantes da indústria portuguesa, que esperam uma decisão já para a semana.

“Prejuízos na produção e, certamente, muitas empresas a estoirarem definitivamente”, seria o efeito previsível da aplicação deste tarifário, considera Jaime Braga, consultor da Confederação da Indústria Portuguesa (CIP). “O Governo percebeu o problema e a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) admitiu rever as tarifas”, adianta.

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Têxteis contra tarifários incomportáveis

Tudo começou em julho, quando a Associação Têxtil e Vestuário de Portugal (ATP) se insurgiu contra o aumento tarifário no gás natural proposto para o ano 2010-2011. “A CIP liderou esta contestação desde o primeiro momento, com empenhamento direto do seu presidente, António Saraiva, que sabe perfeitamente o que representa o custo do gás na produção industrial”, adianta Jaime Braga.

Depois da ATP surgiu a reação do sector cerâmico. “Não podemos aceitar um aumento desta dimensão, que nem está devidamente justificado”, refere Marcelo Sousa, vice-presidente da Associação Portuguesa da Indústria Cerâmica (APICER).

Cerâmica não entende desvios tarifários

“A ERSE diz que na origem do aumento está um desvio tarifário, mas até ao momento não conhecemos nenhum documento que o demonstre financeiramente”, considera Marcelo Sousa. Dando como exemplo as faturas pagas pela empresa que gere – a Matcerâmica, uma das maiores no segmento das louças -, “o agravamento do custo do gás tem sido preocupante pois, entre 2008 e 2010, o preço médio do m3 de gás subiu 56%, o que é incomportável”, refere.

“Como é que os empresários podem assumir compromissos com os clientes se, depois, sem aviso prévio, sofrem aumentos brutais na sua estrutura de custos?”, questiona.

Na Associação Industrial Portuguesa (AIP-CE), o assunto tem vindo a ser acompanhado pelo vice-presidente Nuno Ribeiro da Silva – igualmente responsável pela Endesa em Portugal. “Foram avaliados os efeitos nocivos do novo enquadramento tarifário, cujo agravamento decorre do facto de ter sido incluído na tarifa de acesso – paga por todos os consumidores, domésticos e industriais – o valor do desvio tarifário, de 95 milhões, diluído por um prazo de três anos”, diz Ribeiro da Silva.

Incerteza no prazo

O que está agora em cima da mesa, pela ERSE, é o aumento do prazo para a diluição do desvio tarifário. “Resta saber em quantos anos poderá a ERSE diluir este montante nas tarifas – a seis, oito, 10 ou 12 anos – para reduzir o agravamento produzido”, questiona Ribeiro da Silva.

Segundo o responsável da AIP-CE, uma diluição muito longa também poderá ter desvantagens ao nível dos custos financeiros a suportar, implicando um valor elevado de juros nesta fatura. Esta opinião é partilhada por Jaime Braga.

Por outro lado, as parcelas em que podem ser desagregados os 95 milhões de desvio não são consensuais. No sector têxtil, nas cerâmicas e na hotelaria, as parcelas que determinam este valor são difíceis de entender.

Uma das críticas relaciona-se com a forma complexa como a questão é apresentada aos consumidores industriais, ao contrário das explicações dadas aos consumidores domésticos, descritas em poucas páginas, para dizer que o agravamento de tarifas que estes vão suportar é de 3,2%.

Desvio explicado em 200 páginas

Quer os associados da AIP-CE quer os da CIP referem que o documento da ERSE onde são referidas as parcelas que determinam o valor de 95 milhões para o desvio tarifário tem cerca de 200 páginas, é demasiado técnico, difícil de entender.

A posição da Associação dos Hotéis de Portugal (AHP) não poupa críticas. Luís Veiga, da AHP, diz que “dificilmente se entendem os critérios da ERSE e as parcelas que são incluídas no desvio tarifário, tal como ninguém sabe quem suporta os custos de funcionamento da própria ERSE”.

Hotelaria contesta

Luís Veiga diz que vai abordar muito em breve a questão das tarifas do gás natural com o secretário de Estado da Energia e da Inovação, Carlos Zorrinho. “Os hotéis fizeram a reconversão do consumo para o gás natural e agora suportam agravamentos de faturas que chegam aos 40%. Isto não pode continuar assim”, afirma.

A APICER também refere a mesma dificuldade relativamente ao entendimento das parcelas que integram o desvio tarifário. Por isso, chegou mesmo a pedir um estudo a Isabel Soares, uma especialista nesta área, da Universidade do Porto, para avaliar todas as parcelas que integram os ¤95 milhões.

ERSE segue boas práticas

Sobre este estudo que a APICER está a fazer sobre o desvio tarifário, o presidente da ERSE, Vítor Santos, diz que “tem todos os documentos, nomeadamente os relativos a tarifas, publicados no sítio na Internet, com total transparência”. E adianta que “todas as decisões da ERSE são tomadas segundo as melhores práticas, com grande rigor e com base em contas auditadas”.

Relativamente a eventuais dúvidas sobre aspetos técnicos – que, segundo Vítor Santos, “são compreensíveis” -, “a ERSE está sempre disponível para receber as associações industriais e empresariais no sentido de as esclarecer e partilhar informação. Essa é uma prática comum na ERSE”.

Indústria diz que concorrência não funciona

Apesar de a ERSE apresentar dados estatísticos que apontam para o facto de 90% do consumo industrial português de gás natural ser contratado em condições de mercado – fora das tarifas reguladas – os clientes industriais e os operadores estrangeiros dizem que a concorrência não funciona bem em Portugal.

A Matcerâmica, uma das empresas de cerâmica com melhor capacidade negocial no mercado português, refere que é difícil encontrar tarifas mais competitivas que as do operador incumbente.

Galp domina oferta, diz a indústria

“Os comercializadores do grupo Galp, que até há pouco tempo dominaram a quase totalidade do mercado de gás, oferecem tarifas para o mercado livre que dificilmente são batidas pelas empresas que entraram agora neste mercado”, diz Marcelo Sousa, gestor da Matcerâmica.

Segundo o responsável da Endesa em Portugal, Nuno Ribeiro da Silva, a abertura do mercado de gás natural ocorreu no princípio deste ano. Por isso os comercializadores que começaram a operar no mercado português ainda não têm uma carteira de clientes que permite ter acesso a fornecimentos significativos de gás natural.

Neste mercado, quanto mais gás natural se conseguir contratar aos fornecedores internacionais, maior capacidade se terá para oferecer preços competitivos aos clientes.

Por outro lado, para fazer transitar gás natural de Espanha para Portugal, as empresas comercializadoras sofrem penalizações adicionais porque têm de pagar taxas em Espanha à Enagas e em Portugal à REN.

Gás espanhol é penalizado

“Tenho uma penalidade de 10% no custo do gás pelo efeito do duplo pagamento – o designado ‘pancaking’ – no transporte de gás entre Portugal e Espanha, o que dificulta a competitividade da oferta dos novos comercializadores”, refere Ribeiro da Silva. Isso explica que ainda haja consumidores industriais dentro do mercado regulado a pagarem a tarifa transitória, que terminará a 31 de março de 2011 (altura em que todas as tarifas serão praticadas em regime de preços livres de mercado).

“A tarifa transitória – que abrange somente 10% dos consumos industriais – foi criada para assegurar o abastecimento a todos os consumidores que ainda não passaram para o mercado livre e que o deverão fazer no limite até ao final de março de 2011”, refere a ERSE.

“O decreto-lei nº66/2010 de 11 de junho determinou o fim das tarifas reguladas de venda de gás natural para os consumidores com consumos anuais superiores a 10.000 m3”, acrescenta.

Se o mercado funcionasse com menos custos no transporte de gás natural entre Portugal e Espanha, os consumidores seriam beneficiados pela atual conjuntura de baixa de preços. A ERSE refere que o excesso de oferta de gás natural na Península Ibérica tem permitido uma assinalável dinâmica de preços.

O drama da “bala de prata”

‘Silver bullet’ – ou bala de prata, em português – é a designação do ‘mecanismo’ legal que determinou a vitória da Nigéria num processo julgado em tribunal arbitral, em que Portugal perdeu. Em causa está um aumento do preço do gás natural comprado à Nigéria, agravando, em 25,2 milhões de euros, o valor que tinha sido negociado com a Galp e firmado num contrato de longo prazo.

“Como o preço do gás natural subiu nos mercados internacionais, a Nigéria argumentou que estava a ser prejudicada no contrato de fornecimento a Portugal, defendendo que o preço do gás tinha de ser revisto em alta. A questão acabou em tribunal e deram razão à Nigéria, acionando a designada ‘silver bullet’.

“Este ‘mecanismo’ legal funciona como uma verdadeira ‘bala de prata’ que matou a questão a favor da Nigéria”, explica o consultor da Confederação da Indústria Portuguesa (CIP), Jaime Braga.

Todos pagam acréscimo na fatura

Acontece que este agravamento do custo do gás nigeriano foi incorporada no valor global do desvio tarifário do gás natural e agora todos os clientes de gás natural em Portugal terão de pagar esse acréscimo na sua fatura de consumo.

A Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) explica que “o custo do gás natural subiu 32% no presente ano-gás (que vai de 1 de julho a 30 de junho), face ao ano anterior, e esse acréscimo de custos tem de ser repercutido nas tarifas”.

Simultaneamente, adianta que “as tarifas para este ano estão ainda a recuperar em cerca de um terço do valor do desvio tarifário gerado em anos anteriores (cerca de ¤33 milhões de um total de ¤95 milhões)”.

Além disso, explica que “o custo unitário do uso de redes subiu em função da forte redução do consumo de gás devido à crise económica”.
O desvio tarifário foi gerado devido a dois fatores: aumento do preço do petróleo, que se refletiu no preço do gás natural, conjugado com a referida renegociação dos contratos a longo prazo da Galp com a Nigéria.

“Esses aumentos não foram repercutidos nos consumidores durante os anos de maior subida do preço do petróleo – ou seja, os consumidores estavam a pagar abaixo do custo real da matéria-prima – mas terão de ser recuperados nos próximos anos”, acrescenta a ERSE. A indústria aguarda agora que a ERSE reveja o prazo em que o desvio tarifário terá de ser recuperado e espera que a diluição do desvio não seja feita a seis anos, pois, diz a APICER, “esse prazo de seis anos quase não reduz o agravamento de tarifas que todos estamos a criticar”.

J. F. Palma-Ferreira/Rede Expresso

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