AVARIAS: Passado e presente

Ainda não li o último John Le Carré, mas uma retrospectiva critica condensada, leve e muito pessoal dos seus livros, num artigo de Antonio Muñoz Molina para o El País, fez-me relembrar que há vida depois de Marte e mais livros para ler do que a vida permite. As primeira obras do autor inglês eram mais ou menos livros de espionagem puros, versão bem construída de universos simples da guerra fria, com muro de Berlim ao fundo. Depois foram evoluindo (talvez a partir de “A Toupeira”), na construção da personagem dúbia de George Smiley, e tornaram-se mais complexos. Já não existiam só pretos num lado e brancos do outro (a verdade, é que no autor nunca existiram), mas toda a paleta de cinzentos. Ao mesmo tempo a escrita ia tornando-se mais soluçante, talvez num registo mais tricotado e tratado; Le Carré emulava (ou tentava) Graham Green, que na área era o mestre e também, andando pé ante pé, na grande zona de puro estilo surripiado a Nabokov (digo eu); sucessivas histórias dentro da história maior. Mas Green vinha da grande literatura, e era essa que o interessava: a espionagem e a acção eram o veículo mas o seu talento era, o de explorar como poucos, as fraquezas da alma humana. Por isso Le Carré, passou de um tempo em que equilibrava argumento, escrita criativa (hi, hi, hi), seriedade, humor e a caracterização certeira de uma certa sociedade inglesa (talvez o “Ilustre Colegial”, seja o seu melhor livro nessa encruzilhada mítica que poucos autores conseguem alcançar), para outro, em que deixou o argumento para segundo plano e apenas acertou o passo pela pretensa qualidade da escrita. Os males do crescimento chegam a todos. Nessa altura iniciou-se a segunda e não melhor fase do escritor; a das causas. Le Carré teve uma epifania e resolveu passá-la à escrita, sob a forma de exploradores e explorados, novamente os bons e os maus mas já não divididos por um muro ali para os lados de Berlim, mas sempre com exploradores e explorados. As personagens deixaram de ter espessura, davam apenas corpo aos lados da barricada (normalmente dois) e, segundo uma parte da crítica a sua escrita atingiu o ponto mais baixo. Parece que o seu mais recente livro recupera uma certa simplicidade das suas primeiras obras mas, talvez por todas as razões apontadas, não teve os favores da crítica. Lembrei-me de tudo o que escrevi atrás, depois de ver de uma assentada, partes de uma maratona 007 exibidas na FOX no Domingo de Carnaval. E gostei de rever as primeiras obras. A evolução da marca deu-se, com a complexidade crescente de quem quer deixar de ser um mero passatempo, rumo à entronização e a um cinema cerebral, pleno de referências. No entanto não vejo melhoras: os filmes mais antigos eram simples passatempos ingénuos, cheios de efeitos especiais próprios da época, mal atamancados, com Roger Moore ou Sean Connery a saírem sempre engomados de perseguições ou lutas várias. Mas eram diversão pura, sem mais . Hoje, os filmes têm cenas de antologia, mas são demasiado humanos, cheios de dúvidas e complexos. Deixaram de ser pura brincadeira e tornaram-se excessivamente complexos e confusos. Talvez isso faça parte da realidade que nos escapa, mas infelizmente leva o filme atrás.

 

Fernando Proença

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