Opinião de Fátima Murta
As crises são sempre muito positivas. Fazem despoletar situações e circunstâncias impensáveis num tempo de normalidade.
Individual, social ou globalmente, a crise antevê sempre uma necessidade de crescimento, de mudança.
Queres conhecer verdadeiramente a índole de alguém? Observa o seu comportamento em tempo de crise. Poderás constatar que, por exemplo, muitas famílias se questionam acerca de “onde” começar por cortar nas despesas. Mais ainda, depois de se ter gasto o dinheiro do mealheiro com as pistolas de água e as máscaras a usar no dia de Entrudo.
Pode-se cortar tudo, mas não nos toquem nos nossos queridos televisores!
Até que chega aquele fatídico dia em que é inevitável devolver o televisor à cátedra da casa de jantar. Grande problema à vista! É que existem em casa três televisores. A qual deles calhará o privilégio de ficar calado, sobre o aparador, lá na divisão só usada em dias de festa, ou nem isso? Sim, porque agora anda tudo ao molhe, e sempre na cozinha.
Todos concordam com a medida de austeridade caseira. Desde que se sacrifique o televisor do outro, o meu não, nem pensar!
– Era só o que faltava, eu preciso ver a minha telenovela! E o carnaval carioca.
– Não querias mais nada, eu não prescindo do meu jogo de futebol! E, para ver desfiles, antes prefiro os nacionais.
– Pai! Mãe! Não há direito! Não me podem tirar os desenhos animados. Isso é contra os direitos das crianças!
O miúdo exige o televisor no seu quarto. A mãe diz que o aparelho da cozinha é o único verdadeiramente imprescindível. O pai resmunga para que a cómoda continue entretida com os folhetins futebolísticos, sempre animam um pouco o desconsolo de um enorme espelho partido.
Nada mais simples. Começamos sempre por reivindicar com um sorriso franco, logo amarelo, em breve as bochechas vermelhas, quentes e hirtas. Súbito, o murro na mesa. Logo, os gritos, as batidas das portas.
O garoto jura que não come mais sopa e vai vingar-se espalhando confettis sobre o frango a assar dentro do forno. O pai garante que não ajuda mais na lavagem da louça. E a mãe, desaustinada, recusa-se a passar os colarinhos e os punhos das camisas.
– Para quê? Bem podes andar todo o dia de fato de treino!
Maravilhosa harmonia familiar…
Num piscar de olhos, o pai deita abaixo a pequenina televisão portátil da cozinha. Por vingança, a senhora Pimenta no Nariz arranca os fios e atira o controlo remoto da Philips do quarto, para dentro do aquário de pedrinhas (fritaram os peixinhos na semana passada) antes de se enroscar sobre a cama. E a criança, como achou graça à cena de destruição protagonizada pelos adultos, encarregou-se ele mesmo de atirar berlindes contra o filme dos desenhos animados.
E ficou com mais uma coisa inútil e um vidro escaqueirado no quando os Simpson’s andavam todos à bulha, enquanto cada um disputava o zapping por todos os canais da sua TV Cabo. Os deveres escolares ficaram todos riscados com tanto cruzamento de dados.
É extraordinário como as famílias logram alcançar as metas estabelecidas a que se propõem. Muito cabisbaixos, e sentados à volta da mesa atolada em cascas de tremoços e castanhas cozidas com erva-doce, seguem agora o episódio da série “Ver Navios”.
Enquanto isso, a vizinha do lado que sempre se opôs à poluição intelectual da caixa que mudou o mundo, resolveu subir o som do leitor de Cd. E o prédio ficou inundado de uma promissora esperança cantada pelo Rui Veloso:
– Não há estrelas no céu…
E ainda dizem que as crises (e o Carnaval) tiram as pessoas do sério? Qual quê!
Fátima Murta