OPINIÃO: Refugiada por um dia

LP
LPhttps://www.jornaldoalgarve.pt
Colaboradora. Designer.

Opinião de Fátima Murta

Exercício de realidade: Reconheço que não é fácil. A primeira coisa que me ocorre é que não desistiria de ser actriz. Levava, pois, o meu caderno de apontamentos e estudos sobre teatro. Junto com ele, um outro ainda por encetar. A tinta das canetas acaba muito depressa. Por isso, prefiro colocar na mochila apenas uma esferográfica e quatro ou cinco lápis, o afiador (o pequeno) e meia borracha. Proponho-me escrever, todos os dias, três ou quatro linhas que ficarão como memória. No futuro, ainda me servirão para alguma coisa. E poderei iniciar a representação do papel de escritora em discurso directo. Um dia voltarei à minha terra!

Tenho sido muito vaidosa com o cabelo e rosto. Custa-me prescindir da imagem. Resolvi cortar o cabelo muito curto. Levo a escova de dentes, uma pasta dentífrica e um copo. Também a decisão de usá-los três vezes por semana, preciso poupar o que levo. Não tenho hipótese de colocar qualquer roupa na mochila. Apenas, duas peças interiores que espero poder lavar onde encontrar água, à medida que as vou despindo para de novo usá-las. Ainda preciso de uma blusa de malha, a que for mais quente e mais leve. Vestido, levo o impermeável curto que me abrigará do mau tempo e dos imprevistos da viagem de barco.

Não convém que a mochila fique pesada. Sou uma mulher de meia-idade. Sofro de má circulação nas pernas, e não sabemos ao certo o quanto teremos que andar. Ainda posso colocar uma pequena caixa de analgésicos, certamente que vou precisar deles. Numa pequena embalagem de plástico guardo os meus documentos, um telemóvel que não me deve servir para nada, e a bateria. Algum dinheiro, pouco, é o que me resta. E as fotografias dos meus pais que (felizmente, para eles) não chegaram a conhecer a tragédia que se abateu sobre nós. Uma pequena porção de água mineral na minha garrafa de esmalte completa a bagagem. Também tenciono beber o mínimo de cada vez. Ah, é provável que venha a viajar com crianças. Como se devem sentir assustadas, impertinentes, esfomeadas! Vou levar uma caixinha com alguns rebuçados que ainda tenho em casa. Talvez assim os possa consolar ao mesmo tempo que suavizo a sua dor.

Por fim, para ler (e rezar) levarei a edição de bolso do Novo Testamento. E um terço.

Não me foi difícil enumerar os objectos selecionados. Impossível (isso, sim) seria fazer o inventário de tudo aquilo a que o meu coração estava (e continua a estar) preso. Não me peçam que assuma a dor de me ver separada do meu gatinho de estimação, é impossível.

Exercício de ficção: Há muito que as janelas da minha casa não têm vidros. Há muito que aquela que era a minha casa se tornou num monte de pedras e cheiro nauseabundo a guerra e desolação. Ficou poupada esta divisão onde, antes, nos sentávamos a comer e a contar as histórias dos nossos antepassados. À nossa volta, as crianças chilreavam e as galinhas cacarejavam pela aldeia.

Do buraco da parede que foi uma janela, olho os campos donde se eleva uma poeira com sabor a tristeza, a fome, a perigo.

Quase todos já partiram. Agora, é a minha vez. Sabe-se lá se conseguiremos chegar à Europa. Tenho esperança que sim, eles têm a obrigação de nos ajudar.

Sinto medo. Nunca saí daqui, não faço ideia de nada do que vou encontrar. Apenas sei que não quero morrer atirada ao vento como um mosquito.

Sei que devo pôr na mochila tudo o que possa salvar. Mas, o quê? Já nada tenho.

Não posso levar comigo um bocado deste céu, um raio do sol da minha terra. Como guardar estes montes? De que forma poderei eu levar o pó dos nossos caminhos? Onde conservar o sabor dos alimentos que já desapareceram? Ou, qual é a receita para colocar num frasquinho o cheiro das nossas gentes, culturas e tradições?

Apanhei uma pequena flor nascida entre duas pedras, ali, no meio da rua. Coloquei-a entre dois bocadinhos de papel. Vou levá-la. Apenas ela. Ela e eu, colhidas a meio de uma vida de áridos desertos e sofrimento. Dentro do coração que ninguém verá – aí, sim – transporto comigo as gargalhadas, as lágrimas, os gritos, a ternura e a coragem de todos quantos viveram ao meu lado. E, agora, sobrevivem em tantos dos lados que o desaparecimento contém.

Exercício de síntese: As pontes servem para unir o que, dantes, estava separado. É urgente criá-las. Sobre as ondas dos mares onde os náufragos se debatem por chegar à salvação dos areais. Ou, sobre os arames farpados dos campos para onde pensamos que nunca os nossos filhos terão o infortúnio de se verem arrastados.

Fátima Murta

 

Deixe um comentário

Exclusivos

Liberdade e democracia na voz dos mais jovens

No 6.º ano, o 25 de abril de 1974 é um dos conteúdos programáticos...

Algarve comemora em grande os 50 anos do 25 de Abril -consulte aqui a programação-

Para assinalar esta data, os concelhos algarvios prepararam uma programação muito diversificada, destacando-se exposições,...

Veículos TVDE proibidos de circular na baixa de Albufeira

Paolo Funassi, coordenador da concelhia do partido ADN - Alternativa Democrática Nacional, de Albufeira,...

Professor Horta Correia é referência internacional em Urbanismo e História de Arte

Pedro Pires, técnico superior na Câmara Municipal de Castro Marim e membro do Centro...

Deixe um comentário

Por favor digite o seu comentário!
Por favor, digite o seu nome

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.