OPINIÃO: As janeiras

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Opinião de Fátima Murta

Florência é filha de pais algarvios. O seu nome primaveril ficou a dever-se à ascendência da madrinha emigrada para o Brasil depois do seu nascimento. Os tempos eram difíceis em Portugal, o Verão escaldava e as dificuldades também.

Florência nasceu na maternidade Alfredo da Costa, era um gelado dia de Janeiro. Quando a família a foi conhecer levou-lhe de presente uma coroa de papel dourado. Mandara a prima que a fizera no infantário. Era Dia de Reis.

Florência não teve possibilidade de se apresentar como alfacinha. Sempre viveu na Amadora, no Bairro de Janeiro. Quando os pais chegaram à vizinhança do Centro Comercial Lido (agora, uma ruína de meter dó!) o Bairro de Janeiro era um lugar chique e invejável para se viver.

Florência sempre festejou a Quadra do Natal e o aniversário no Algarve. A casa dos avós situava-se numa aldeia do barrocal. Florência deliciava-se com o alecrim, com as estevas, com a matança do porco, com os fritos que a avó sabia preparar como ninguém, com os mimos com que a apaparicavam. Mas, o que mais a prendia ao local de origem dos pais, era o cantar das Janeiras.

Não se tratava de uma aldeia muito unida. As rivalidades entre vizinhos, as invejas de quem tinha tido mais sorte e esperteza para vender terras aos estrangeiros; o diz-se que diz-se dos meios pequenos; tudo isso conseguira dividir os habitantes do pequeno lugar quase na serra do Algarve. Mais ainda, a chegada dos interesses e das clientelas que os partidos fomentam.

Mas, quando se chegava ao final de cada ano, tudo parecia ficar esquecido. Vivia-se um verdadeiro tempo de tréguas. E, em nome de uma tradição que se impunha ser preservada, a população juntava-se para manter de pé o seu cantar das Janeiras. O grupo era composto por miúdas e graúdas; tudo vozes sonantes e afinadas, só mulherio eram mais que muitas, Florência era uma delas. Ao seu lado, a avó materna. Atrás, a paterna. E, à sua frente, como não podia deixar de ser, a mãe que a beliscava sempre que ela cantava mais alto do que o resto do pessoal.

Florência cantava bem. Era uma rapariga desenvolta e muito gulosa. É que, Janeiras sem doces, não combinava!

Florência casou jovem. Como mandava “a santa sapatilha da sua tia” (expressão que muito ouvia ser utilizada por uma vizinha dos avós), escolheu o mês de Janeiro. Mas, tiveram que se deslocar para o outro extremo do País, lá onde também se podem admirar as amendoeiras em flor, um pouco mais tarde.

Tão ocupada estava com a preparação do casamento que Florência não teve qualquer possibilidade de integrar o grupo para as cantorias das Janeiras. Além do mais, já se encontrava grávida e os enjoos eram muitos; sobretudo, se ensaiasse uma pequena nota que fosse.

Com gravidade de circunstância, Florência ia preparando a sua casa nova. Na terra do noivo, bem longe da Lisboa Oeste, das paisagens do Sul; a vida é assim mesmo. E ela apaixonara-se por um nortenho, daqueles que põem a franqueza no sorriso e o folar de carne sobre a mesa para os amigos.

Enquanto ia verificando se tudo estava em ordem para quando começassem vida nova, Florência trauteava alguns dos cantos populares que Zeca Afonso gravara: Muita neve cai na serra/ Muita neve cai na serra/ Só se lembra dos caminhos velhos/ Quem tem saudades da terra”.

Depois do nascimento do pequeno Castanho, as coisas correram menos bem que o esperado. E Florência, mais o marido (a criança ficou ao cuidado dos avós paternos, a aprender a cantar as Janeiras pelas terras de Trás-os-Montes), viram-se obrigados a engrossar a nova vaga de emigração. Para tal, recorreram à velha madrinha radicada no Rio de Janeiro. E lá foram trabalhar numa padaria, um dos negócios dos portugueses que prosperaram em terras brasileiras.

No ano seguinte, pela primeira vez Florência viveu um Natal tórrido. E, mais uma vez, esteve impedida de cantar as Janeiras. É que, no próprio dia em que deveria segurar a pandeireta e exibir a voz na associação cultural do bairro, Florência jogou as mãos à barriga, e gritou:

– Tá na hora! Vai nascer.

Poucas horas depois, Florência sorria e dava as boas-vindas ao seu segundo filho. “As palhinhas deitam lírios/ Menino, sois meus alívios/ As palhinhas deitam cravos/ Menino, sois meus cuidados/.

A criança recebeu o nome de Januário. A madrinha de Florência, entretanto, já vaticinou que este pequeno talvez venha a ser o primeiro português a dar nome a escola de samba vencedora.

Fátima Murta

 

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