OPINIÃO: A dentada no mano velho

LP
LPhttps://www.jornaldoalgarve.pt
Colaboradora. Designer.

Opinião de Fátima Murta

Mano velho apenas nascera uma década antes. Não era tão mais velho do que ela. Mas, mano velho aprendera a odiar secretamente a irmã.

Mano velho era o mais extremoso dos irmãos quando se encontravam junto de familiares ou conhecidos. Porém, a sós com Bélinha, mano velho transfigurava-se.

Nos lábios trémulos de mano velho desenhavam-se palavras ameaçadoras com que laçava a pequena Bélinha nas redes do medo.

Bélinha era uma menina nascida no seio de muitas contradições: amada e abandonada, mimada e desprotegida. Movida do sentido de pertença familiar, era uma criança que amava e tudo desculpava.

Por vezes, confidenciava-se ao cão que lhe haviam oferecido. Ferida de profunda solidão, Bélinha pensava na sua família, e via agigantarem-se os sinais de desamor que dela recebia.

Por vezes chorava, mas não limpava as lágrimas. Ninguém gostava dela, ninguém!

– É porque eu sou má! Eu sou má! Eu sou má!

E esta tremenda culpabilidade cravava-se-lhe como um pequeno estilhaço de vidro ao surpreender o calcanhar descalço de um caminhante.

Bélinha sentia a liberdade de viver quando acompanhada das personagens que criava e a transportavam para fantásticas paisagens de sonho e fantasia.

Mas, por vezes, Bélinha parecia despertar. E não sentia medo.

O mano velho mantinha-se atento a todos os seus movimentos. Uns dias, brincava com ela, oferecia-lhe chocolates, fazia-lhe cócegas nos pés, desafiava-a com brincadeiras divertidas. Outras vezes, assustava-a, agredia-a, divertia-se à custa da dor que lhe causava.

Contudo, quando o silêncio acumulado atingia índices acima do suportável, o corpo e as emoções davam sinais. E ficava doente. Impedida de ir à escola porque a febre não deixava; as dores de garganta, também não. A mãe também era obrigada a permanecer em casa, sem ir trabalhar. Bélinha gostava desta consolação, afinal só assim podia pedir à mãe fatias de pão com manteiga, sem que ela reclamasse por ser perturbada nos afazeres. Quando estava doente, quase tudo valia a pena. Não se sentia tão má, sobretudo, isso. O carinho da mãe era como um anjo que punha em debandada o papão da culpabilidade.

Mano velho é que não gostava nada dessas intimidades entre a mãe e a irmã. E, então, passeava-se pelo quarto onde Bélinha se encontrava, e rosnava-lhe, muito contrariado:

– Fingida! Grande fingida! Grande fingida!

Mano velho gostava muito de vê-la humilhada e sofrida, aos seus pés. Para o conseguir, só tinha que agarrá-la pelas mãos e espremer-lhe os seus pequeninos ossos até que ela, contorcida de dores, ficava de joelhos, ali mesmo no chão de tijoleira da casa de jantar. E gostava de escolher para o seu exercício sádico, sobretudo, o dia de aniversário de Bélinha.

Finalmente, chegou a hora em que Bélinha se agigantou no coração e sem que ele, o mano velho, o pudesse prever. E quando Bélinha, já de joelhos, sentiu insuportável a dor nas suas mãozinhas estranguladas, esmagadas entre as manápulas de mano velho, Bélinha não se conteve e deixou para sempre o desenho de um dos novos incisivos superiores acabadinhos de nascer sobre a pele das garras que a prendiam.

Mano velho teve que suportar o impacto daquele fiozinho de sangue que brotou na pele da sua mão de adulto de dezoito anos, dez anos mais velho do que a irmã.

– Desgraçada! – Gritou.

E soltou-a.

Nesse dia, Bélinha conseguiu fugir para casa da vizinha. À noite, sim, foi fingida. Quando a mãe a foi buscar para levá-la para casa, Bélinha fingia que dormia. Apenas se sentia a salvo em casa desta vizinha, e de muitas mais vizinhas.

Mano velho nunca deixou de cercá-la, de odiá-la, de esmagá-la. Bélinha aprendeu a fingir e tornou-se uma fingida profissional. Afinal, só estaria a salvo se jamais denunciasse o mano velho.

Até que um dia, sem esperar, Bélinha teve saudades do tempo em que a acusavam de fingida, sem que ela o fosse, na verdade. E começou a lutar por ser verdadeira. Deixou as poses infantis de lado, passou a exigir que a tratassem por “Bela”. Esse era o seu nome.

Hoje, Bela sabe que não tardará o dia em que se deixará surpreender por fragâncias de luz inundando o seu coração reconciliado.

– Por fim, talvez sejamos irmãos!

Fátima Murta

 

Deixe um comentário

Exclusivos

Liberdade e democracia na voz dos mais jovens

No 6.º ano, o 25 de abril de 1974 é um dos conteúdos programáticos...

Algarve comemora em grande os 50 anos do 25 de Abril -consulte aqui a programação-

Para assinalar esta data, os concelhos algarvios prepararam uma programação muito diversificada, destacando-se exposições,...

Veículos TVDE proibidos de circular na baixa de Albufeira

Paolo Funassi, coordenador da concelhia do partido ADN - Alternativa Democrática Nacional, de Albufeira,...

Professor Horta Correia é referência internacional em Urbanismo e História de Arte

Pedro Pires, técnico superior na Câmara Municipal de Castro Marim e membro do Centro...

Deixe um comentário

Por favor digite o seu comentário!
Por favor, digite o seu nome

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.