A acumulação do capital e o trabalho/emprego

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Para se perceber as taxas de desemprego elevadas que hoje persistem em muitos países, as crescentes exigências de flexibilidade e mesmo uma desvalorização do fator trabalho, não nos devemos atar apenas ao impacto das tecnologias de informação. É também necessário perceber o regime de acumulação de capital vigente que tem uma influência direta.

Comecemos pela seguinte questão: em quantas classes podemos dividir a sociedade? De A a E como na publicidade? Ricos, classe média e pobres? Não; para termos uma melhor perceção da realidade, considero poder dividi-la assim: pobres; classe baixa, média-baixa; média; média-alta; alta e milionários (ricos).

O que vem acontecendo nas últimas duas décadas é um estreitamento das classes médias, com diminuição do poder de compra, um crescente de endividamento, aumento do desemprego (ou emprego precário) e redução de salários (mantêm a ilusão do consumo com o fenómeno low-cost). Em contrapartida, está em crescendo a classe dos milionários, com acumulação de formidáveis fortunas. Vejamos porquê. Antes, porém, uma nota para referir que as classes dos “pobres e baixa” são não raras vezes suportadas por transferências do Estado ou ocupam empregos pouco qualificados de baixa remuneração; a classe alta vive não frequentemente de rendas e lugares reservados, à margem da mobilidade social.

Voltemos aos milionários. Imagine o caro leitor que há 20 anos atrás ia às compras à baixa da cidade. Tinha inúmeras lojas de roupa, sapatarias, minimercados/mercearias, restaurantes, drogarias, etc. Cada uma tinha o seu dono (empresário, que normalmente estava presente) e os seus empregados (muitas vezes os mesmos durante décadas e que sabiam efetivamente atender o cliente). Cada loja tinha o contabilista, os fornecedores, o seu banco, a empregada da limpeza e por aí adiante. Cada um destes comerciantes era uma fonte de emprego e de criação de riqueza.

Agora, se for às compras, talvez vá ao shopping. Para comprar roupa tem, imagine, 15 lojas com nomes e oferta diferentes. Só que oito pertencem a um só dono (organização), três a outro, etc. Depois resolve almoçar: o quê? Não tem de se preocupar. A maioria dos restaurantes não tem ementa, é sempre igual: hambúrgueres, pizas, sandes ou outra coisa, uniforme. Provavelmente em formato franchise; a maioria pertence a grandes empresas multinacionais e são controladas por duas ou três empresas que as representam no todo nacional. Antes de ir para casa resolve fazer compras de supermercado. Onde? Numa grande loja/hiper, duma grande cadeia de distribuição.

Este não é apenas um fenómeno destes setores. Lembra-se das carpintarias que faziam portas e janelas? Hoje desapareceram porque os supermercados de bricolage têm tudo isso em formato standard a preços imbatíveis.

Quais as principais características deste novo comércio? Pertencem a grandes cadeias internacionais ou nacionais; tendem a ter produtos standards; fornecedores limitados ou confrontados com margens muito limitadas; forte controlo das vendas e sto-cks, em termos informáticos; usam câmaras de vigilância. Os donos destes comércios, pertencentes a grandes organizações internacionais, são… acionistas. Ou um grande acionista que faz parte das grandes fortunas internacionais.

Quanto ao trabalho, a mão de obra predominante é jovem e os contratos são precários. Muitos dos contratados são por empresas de trabalho temporário que depois prestam serviço às grandes empresas, evitando assim os vínculos de maior durabilidade. Ou seja, caro leitor, enquanto antes ia à baixa, ao centro da cidade e comprava a inúmeros comerciantes/empresários, que aqui residiam e aqui investiam os seus lucros, gerando efeito multiplicador na economia local e criando empregos estáveis, agora faz compras em grandes organizações, que canalizam a maioria dos seus lucros para acionistas que estão maioritariamente no exterior; os lucros não são reinvestidos no país nem fica por cá a riqueza sob a forma de poupança.

Eis, pois, uma nova forma de acumulação, sob a forma de grandes organizações internacionais que estão presentes à escala global. Beneficiam da internet e das novas comunicações para controlarem à distancia estes grandes conglomerados e acumulam riquezas extraordinárias. O economista francês Thomas Pikety, que escreveu a obra “O Capital no século XXI”, refere podermos estar perante uma nova forma de feudalismo.

Este é um modelo disruptivo para o emprego, que em conjunto com o impacto da inovação relacionada com as novas tecnologias, tornam o assunto ainda mais complexo. Estamos perante novos e grandes desafios: emprego flexível, em locais diferentes (em casa ou na fábrica? no país ou estrangeiro?), bancos de horas, contratos temporários, etc. A criação de emprego não é uma questão ideológica, de esquerda ou direita. Aliás o poder político tem pouco poder relativo face às grandes organizações atrás referidas.

Entretanto, a classe média, base da sociedade de consumo das democracias ocidentais tradicionais vai continuando a definhar, enquanto mantém a ilusão do consumo low-cost que estas organizações proporcionam. Até quando?

Helder Carrasqueira
*Professor na ESGHT – Universidade do Algarve

 

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