O drama da minha vizinha Frederica

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O drama da minha vizinha Frederica

A minha vizinha senhora Frederica vive só há muitos anos. O marido faleceu novo e os filhos e filhas estão repartidos por Portugal. É que o senhor Albertino era um homem muito patriótico.

No entanto, apesar de mãe de tantos filhos, a pobre velhota foi votada ao abandono. Vale-lhe a mísera pensão de viuvez que recebe e que só dá para uma ração de espaguete com salsichas. A televisão é a sua única companhia. O resto do dinheiro que recebe fica pela farmácia e empresas de abastecimento de água, luz e gás. Quando tem fome (o que é raro), vá de mastigar pão com ar. Quando sente falta de alguém para conversar, agarra no pequeno vaso de margaridas e vai desfiando os seus desabafos enquanto as borrifa com umas gotinhas de água que rouba ao lava-louça.

Pensava ela que a crise já tinha rebentado. Os filhos, também. E, porque cada um tinha que fazer pela vida, pensando na solidão da pobre da mãe passaram vários dias em telefonemas intermináveis de uns para os outros e resolveram visitá-la, em dias diferentes, para lhe deixarem uma pequena companhia.

A filha Ifigénia desprendeu-se, a chorar, do Lingrinhas, um caozinho. Era urgente garantir a guarda da querida mãezinha. O filho mais velho, Felisberto Pancrácio, pegou na gaiola do periquito e pespegou-a na cozinha da sua querida mãe. Esqueceu-se de a avisar que o pobre passarito sofria de crises de pânico sempre que ouvia as badaladas do relógio da sala. A Verónica, neta preguiçosa, ficou farta da Sabichona, uma gata peluda que miava muito e sempre que a miúda trazia negativas para casa.

A minha vizinha senhora Frederica ficou, pois, congestionada dentro da Arca de Noé. O dinheiro das salsichas tinha agora que chegar para as compras do granulado, das pastas de fígado e da alpista. A única consolação foi verificar que o nível de colesterol baixara. Em contrapartida, enquanto não atirou pela janela o relógio mais o seu badalo e comprou um despertador a pilhas, viu a pressão arterial chegar aos píncaros da lua por causa do Sebastião, o periquito com crises de histeria de quinze em quinze minutos.

Claro que os entes queridos voltaram a andar atarefados e cabisbaixos. Até porque descobriram que, afinal, agora é que tinha sido declarado o início oficial da crise. E com ela, o alargamento do conceito jurídico de agregado familiar.

Depois da senhora Frederica ter passado uma semana nas filas intermináveis da segurança social para apresentar o comprovativo dos rendimentos, foi visitada por uma funcionária que decretou a redução da pensão. E tudo, porquê? É que a minha vizinha, a senhora Frederica, antes de abrir a porta à assistente social, dizia rindo, para dentro de casa:

– Lingrinhas, não me faças cócegas! Já comeste, Ritinha? Vai chamar o Sebastião! Vai, anda!

E chegou à conclusão de que a senhora Frederica tinha feito falsas declarações acerca dos membros do seu agregado familiar.

Vai daí, pensou com os seus botões:

– Esta pensa que me engana! Já vou entalar mais estes maganos! Cambada de fraudulentos!

Quando a senhora Frederica abriu a porta e a convidou a entrar, disse:

– Estou esclarecida.

E desceu escadas abaixo, muito feliz com o seu bom desempenho profissional.

Apesar de ser periquito, e já não haver relógio a dar ao badalo, foi aí que o Sebastião teve a sua última crise de pânico. Abriu o bico e esticou o pernil a alpista dentro da gaiola. O Lingrinhas começou a ganir e, tanto, que a Ritinha se atirou a ele fazendo com que o pobre tivesse um ataque cardíaco. E lá se foi desta para melhor. Oprimida pela culpabilidade, só restou à Ritinha fugir para a rua. E nunca mais voltou.

Agora que a senhora Frederica voltou a ter as paredes por companhia, e sobrevive com metade da pensão, tem uma única ocupação: apanhar a água das inundações constantes, vindas da casa da nossa vizinha senhora Anastácia, sempre que se lamenta pela perda dos seus últimos entes queridos.

Para não repetir a história, basta referir que a senhora Anastácia, nossa outra vizinha, vive só há muitos anos. O marido faleceu novo, e o resto da história é igual à da senhora Frederica. A única diferença entre elas, é que uma usa botinhas de lã para aquecer os pés e suavizar as dores das varizes; e a outra anda todo dia com um capachinho enfiado na cabeça em homenagem ao falecido marido, o senhor Torquato Adalberto, que também foi um homem muito patriótico.

Fátima Murta

 

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