Nova bancarrota: uma operação política do governo argentino

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“Não há nenhum inconveniente para que se negoceie com os fundos litigantes, a não ser um. O governo está a ganhar imenso em popularidade com a campanha populista ‘Pátria ou Abutres’ tendo em vista as eleições presidenciais de 10 de dezembro de 2015, retirando de cena a atual crise económica e recentrando o foco de atenção política para esta nova causa”, acusa Nicolás Salvatore, professor da Faculdade de Ciências Económicas da Universidade de Buenos Aires.

Salvatore concedeu uma entrevista exclusiva ao Expresso no momento em que em Nova Iorque a reunião entre o governo argentino e o mediador nomeado pelo juiz Thomas Griesa foi interrompida, para vir a ser ainda retomada nas próximas horas de 29 de julho (período da tarde e noite na costa ocidental dos Estados Unidos). O ministro da Economia argentino Axel Kicillof estará presente, depois de ter participado com a presidente Cristina Kirchner na 46ª cimeira do Mercosul, realizada em Caracas.

Na Venezuela, a presidente argentina acusou o juiz norte-americano de não ser juiz, mas sim parcial, em mais um ataque a Thomas Griesa. O presidente do Uruguai, José Mujica, terá sugerido, na cimeira em Caracas, ações concretas nas reuniões à porta fechada que fossem para além das meras declarações de apoio à Argentina contra o juiz Griesa e os fundos litigantes.

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Entretanto, os detentores de dívida reestruturada argentina em euros propuseram ao juiz Griesa que decida uma medida cautelar de emergência (emergency stay, no jargão jurídico, distinta de stay, medida cautelar) e a Associação de Bancos Argentinos (ADEBA) avançou com a oferta de uma garantia de 250 milhões de dólares para a negociação com os fundos abutre.

Recorde-se que, pela meia noite de 30 de julho, terminará o período de graça de 30 dias para a Argentina pagar efetivamente os juros aos credores com títulos de divida reestruturada que venceram no final do mês passado. Caso a operação não se concretize – pois o dinheiro depositado pelo governo de Buenos Aires para esse pagamento está congelado no Bank of New York Mellon por ordem do juiz norte-americano – a Argentina entrará em bancarrota parcial, um evento de crédito que poderá levar ao acionamento dos credit default swaps relacionados com a dívida argentina (que a 28 de julho já haviam subido para 1872 pontos base) e a operações de descida do rating da Argentina para a situação de default seletivo, como já adiantou a Standard & Poor’s à Bloomberg.

Depois do vencimento de juros a 30 de junho de uma das linhas de obrigações reestruturadas, os próximos vencimentos de dívida argentina ocorrerão em 30 de setembro (obrigação Par) e a 2 de dezembro (obrigação Global 2017).

A última bancarrota da dívida argentina registou-se a 23 de dezembro de 2001 quando o Congresso aplaudiu o anuncio do então presidente Adolfo Rodríguez Saá de que era preciso “agarrar o touro pelos cornos” e “suspender o pagamento da dívida externa”.

ENTREVISTA COM NICOLÁS SALVATORE

P: Por que razão o governo argentino se recusa a negociar com os fundos litigantes?

R: Não há nenhum inconveniente para que se negoceie com os fundos litigantes, a não ser um.

P: Qual?

R: O governo está a ganhar imenso em popularidade com a campanha populista ‘Pátria ou Abutres’ tendo em vista as eleições presidenciais de 10 de dezembro de 2015, retirando de cena a atual crise económica e recentrando o foco de atenção política para esta nova causa.

P: A tentativa do governo argentino em ganhar tempo até que a cláusula RUFO [acrónimo de right upon future offers, que permite, até final deste ano, aos credores que aceitaram a reestruturação reclamar no caso do governo argentino avançar com propostas mais favoráveis com outros credores] caduque no final do ano não faz sentido?

R: Tem sido usado esse argumento da cláusula RUFO. É um argumento 100% falso, fruto de ignorância.

P: A presidente disse hoje em Caracas que se ficar com um novo cão batizá-lo-á de Rufo …

R: Essa cláusula é clara como água. Só se aplica se se tratar de um ato voluntário. Ora, como é óbvio, uma ordem judicial de pagamento aos fundos litigantes por parte de um juiz de Nova Iorque nada tem absolutamente de voluntário. É uma ordem compulsiva e como tal, estando a Argentina obrigada a pagar, não violaria a cláusula RUFO.

P: Mas isso é mesmo possível sem riscos?

R: Há três formas de “contornar” essa cláusula, sem qualquer temor, com total confiança. O economista que inventou a troca de dívida de 2005, Guillermo Nielsen, então secretário de Finanças do ministro Roberto Lavagna, já explicou, nestes últimos dias, como desenvolver a negociação sem detonar a referida cláusula, avançando com a ideia de criar um depósito indisponível até final do ano que se ativará no próximo ano, depois de caducar a cláusula RUFO. Outra das formas é acatar a sentença – não se trata de negociação alguma, não há violação do RUFO — e pagar os 100% do valor da dívida aos fundos litigantes neste processo judicial para evitar a bancarrota amanhã, ganhando tempo, até janeiro de 2015, para negociar com os restantes credores que não aceitaram a reestruturação. Esses credores preferem obrigações e quanto mais prolongado o prazo melhor. Finalmente, um grupo de bancos internacionais fez a proposta de adquirir as decisões judiciais, congela-las, e negociar depois de janeiro de 2015 com o governo argentino. Os membros do governo estão a agir contra o interesse nacional de evitar o default. Isso é incrível, inaceitável e imperdoável. Trata-se do default mais absurdo da história.

P: A decisão do juiz Griesa não implica uma clara transferência de poder para os fundos abutre em matéria de reestruturações de dívida?

R: Não há transferência alguma de poder, e nem há qualquer risco futuro para a Europa com esta sentença. O que Thomas Griesa sentenciou e o Tribunal Supremo dos Estados Unidos é algo muito simples, algo muito velho e conhecido de qualquer um que tenha frequentado um curso de Finanças: o direito dos que rejeitaram a reestruturação – conhecidos pela designação de hold outs – subsiste à reestruturação da dívida. O que a justiça nova-iorquina fez foi preservar a propriedade privada, essa vaca sagrada do capitalismo. Há algo de exótico nisso? Não. É assim para todo o mundo, menos para o governo kirchnerista argentino. O Peru e o Equador pagaram aos hold outs sem levantar nenhuma bandeira pseudo revolucionária.

P: A presidente acusa o juiz de parcialidade…

R: Nenhum juiz quer passar à história como responsável por um default absurdo. Griesa não pretende o incumprimento da Argentina, mas sim um acordo. Mas o governo argentino, para além de o mimosear publicamente com insultos, não se quer sentar à mesa com os litigantes. O juiz quer que se sentem à mesa de uma vez por todas, sem mais dilações. É bom recordar que Griesa durante uma década decidiu a favor da Argentina e contra os hold outs. Por exemplo, concordou com as duas trocas de dívida. Era um juiz amigo da Argentina até que o governo argentino o insultou e confrontou o tribunal.

RE

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