Negócios suspeitos no Alqueva

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Um proprietário ficou sem a casa e terra quando o Estado expropriou uma vasta área do Alentejo para construir a barragem de Alqueva. Foi em 1999. Três anos depois, José Luís Varela oficializou a sua desconfiança de que as medições da Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas de Alqueva (EDIA) estavam incorretas. Carta para lá, ofício para cá, a EDIA foi refutando a acusação e, entretanto, decidiu arrendar uma parte desse terreno à mãe de um engenheiro da empresa, apesar de a lei não permitir uso diferente do alegado na expropriação.

“Vencido mas não convencido”, assim ficou José Luís Varela, 72 anos, agricultor e criador de gado por herança, veterinário de profissão, ao ver expropriados 33,2736 hectares da sua propriedade, que incluíam a residência da família, mandada construir pelo pai no concelho de Reguengos de Monsaraz, onde já moravam os seus bisavós e avós. Desde o início que a sua convicção, atestada por levantamentos topográficos, é a de que casa e terra foram expropriadas indevidamente, já que se encontrariam acima da cota estabelecida para o regolfo da albufeira de Alqueva.

José Varela acabou por negociar uma expropriação amigável que não passou, nas suas palavras, de “uma venda forçada”. E, como o uso do terreno adjacente já não servia para cultivo ou pecuária, solicitou a demolição das cabanas de apoio agrícola e os currais, para evitar o vandalismo. Foi o que disse ao Expresso e o que consta na ação que moveu, em 2011, contra o Estado, o Ministério da Agricultura, a EDIA e a Câmara local a fim de que os hectares expropriados acima da cota dos preestabelecidos 153 metros voltem à sua propriedade. O processo aguarda o desenlace no Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja.

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Para a empresa pública responsável pela edificação de Alqueva, o proprietário não tem razão: o Monte São Luís não podia ter outro destino. “A localização dos edifícios de habitação da propriedade agrícola situava-se entre a cota de nível de pleno armazenamento da albufeira de Alqueva (NPA — 152 m) e o nível máximo de cheia (NMC — 153 m). É certo que as edificações em causa se situavam muito próximo da cota limite da expropriação mas, em todo o caso, ainda dentro dessa mesma cota.”

Arrendamento problemático

Acresce a esta questão o facto de uma parcela do terreno expropriado a José Varela aparecer nos 26,13 hectares arrendados pela EDIA a uma empresária de Évora, dedicada à produção de cereais. Em 2012, pelo menos, a mãe do engenheiro José Ruivo, da EDIA, apresentou ao Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP) essa área de 5,21 ha e outros 45,45 ha, somatório de terras espalhadas pelos concelhos de Mértola, Évora, Alvito, Cuba, Ferreira do Alentejo, Serpa, Alandroal e Mourão.

Contactada em casa, morada da empresa unipessoal com o seu nome, Mónica Ruivo, que tem já uma idade avançada, começou por dizer que fizera partilhas por volta do ano 2000, que só tivera terras em Évora e nunca se dedicara à agricultura. A dada altura, optou por chamar outro filho que “estava mais dentro do assunto”. João Ruivo afirmou que, em tempos, cultivaram trigo, mas abandonaram a agricultura por “só dar prejuízo”, e disse terem arrendado terrenos à EDIA “apenas para perfazer a área exigida” pelos fundos comunitários.

“É um direito que assiste à minha mãe”, argumenta o irmão do funcionário da EDIA, quanto à candidatura ao chamado “pagamento único”, um regime de apoio “aos agricultores, que tem por princípio básico o desligamento total ou parcial da produção”, segundo o IFAP. Este organismo recusou-se a esclarecer o caso, alegando a lei de Proteção de Dados Pessoais.

João Ruivo, questionado na quinta-feira por SMS, precisou: “Penso que o primeiro contrato de arrendamento tenha sido algures em 2012 e o último terminou em fevereiro. Os valores foram de €50/ha para 25,01 hectares”. A EDIA confirma o arrendamento a Mónica Florindo Piteira Batista Ruivo de 25 ha, cerca de quatro dos quais expropriados a José Varela, parcela com uma renda de 200,72 euros ao ano. “O contrato de campanha terminou em fevereiro de 2016, altura em que a rendeira manifestou desinteresse em continuar”, explicou Diogo Nascimento, responsável pelas expropriações.

Na zona de Évora, há quem arrende o hectare de sequeiro, ou seja, sem água, a 100 euros ao ano. Na Bolsa Nacional de Terras, a renda de um terreno agrícola com regadio, em Reguengos de Monsaraz, custa 1295 euros por hectare. O preço feito a Mónica Ruivo foi o estabelecido pela companhia — “o valor varia entre os 40 e os 100 euros, conforme as características dos terrenos que a empresa dispõe para arrendamento”. De 700 hectares, 257 estão na mão de cerca de uma centena de rendeiros, havendo “mais alguns familiares de funcionários da empresa”, acrescenta Diogo Nascimento.
Quando se fala no caso de José Varela, a empresa de Alqueva está convicta: “O proprietário assinou o auto de expropriação amigável onde, além da área de 29,1924 ha, abrangida pela Declaração de Utilidade Pública (DUP), foi ainda adquirida, a pedido dos proprietários, uma parcela sobrante afetada na sua viabilidade, de 4,0812 ha”. Para a EDIA, trata-se de terreno que pode ser usado para outro fim, mas na escritura de expropriação não consta qualquer diferenciação.

O Código das Expropriações é claro: os terrenos para utilidade pública não podem ser utilizados para outros fins. A própria EDIA já esclarecera por e-mail: “As parcelas expropriadas não podem ser objeto de arrendamento, não só porque são domínio público do Estado, mas porque estão afetas a outro fim e, concretamente, nelas estão implantadas as diversas infraestruturas que integram o sistema primário e a rede secundária do EFMA” (Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva). Pedro Aires, ex-administrador da empresa e agora do gabinete jurídico, acentuou que, no caso dos arrendamentos, trata-se sempre de áreas cujos proprietários pediram a expropriação.

E Diogo Nascimento reafirmou: “Para nós este terreno é sobrante, sempre foi sobrante. Em termos do auto não está individualizado, em termos de utilização é-o.” Pedro Aires reconhece que não há distinção na escritura: “Formalmente é isso, mas uma coisa é óbvia, aquela área nunca pode servir para o mesmo fim da outra (a da residência), já que está acima da cota. O que conta é o cotejo da Declaração de Utilidade Pública e os tais quatro hectares não integram a DUP”. Na lei, porém, lê-se: “O disposto no presente Código sobre expropriação total é igualmente aplicável a parte da área não abrangida pela declaração de utilidade pública.” Isto, uma vez que se permite ao proprietário requerê-la, “quando seja necessário expropriar apenas parte de um prédio” e o restante não tiver viabilidade económica.

Ana Baião e Anabela Natário (Rede Expresso)

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