Na época do entretenimento

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Vivemos no presente, uma época marcada por aceleradas transformações do nosso modo de vida: a tecnologia que invade todas as áreas; a desvalorização do fator trabalho e a ameaça da robotização das atividades produtivas; o predomínio das atividades financeiras; o crescimento dos serviços em desfavor da indústria e da agricultura; o incremento do comércio online; a reestruturação do conceito de família; o esvaziamento do conceito clássico de organização política entre esquerda e direita; a confusão entre virtual e real, etc.
Porém, o que motiva a partilha desta reflexão com os eventuais leitores é um fenómeno em crescendo: o entretenimento. Sempre houve entretenimento. A música, os filmes, o futebol, as novelas ou os meios de difusão, como a rádio ou televisão, eram exemplos comuns. Na vida há um tempo para trabalhar e deve haver um tempo para o lazer, para o convívio, para a distração. Todavia, nestes primeiros anos do século XXI muita coisa mudou, com o entretenimento a assumir uma relevância inusitada. Vejamos.
Desde logo, a tecnologia. Hoje é vulgar vermos crianças nos restaurantes ou outros locais públicos “ocupados” com telemóveis. Assim não “chateiam” os pais, é mais comodo. Os jovens têm como centro do universo um telemóvel. Para estes dispositivos foram criados jogos, aplicações das mais variadas ordens e essencialmente as redes sociais, um mundo virtual que é o centro do mundo de tanta gente. Os adultos também não escapam. É hoje comum ver famílias que estão a “ver” televisão, mas cada elemento está com o telemóvel ou um computador portátil por perto, desenvolvendo atividades paralelas, não raras vezes, de entretenimento.
As televisões por sua vez, desdobraram-se em canais generalistas e canais de informação/temáticos. Quem tem recursos pode subscrever os de informação/temáticos; quem não tem, sujeita-se a uma programação onde predomina as novelas, o futebol, os concursos ou os programas de generalidades e banalidades. Ou seja, o entretenimento. Nas rádios é comum o locutor de serviço se congratular com o anuncio de céu azul e temperaturas altas na previsão para o dia seguinte, mesmo quando o país está em seca extrema. Ou ao invés, anunciam como uma chatice um dia de chuva. É uma visão urbana da sociedade que privilegia o bem-estar na cidade. Acresce que praticamente todas as rádios, mesmos aquelas que até há pouco tempo tinham uma programação mais sisuda, agora têm o seu contador de graçolas, de piadas, todos os dias. É a afirmação do primado do entretenimento.
Se durante o inverno o futebol ocupa um desmesurado espaço na comunicação social e na vida comum, no verão desenvolveu-se uma miríade de festivais de música, a que se associam os média em parcerias múltiplas, passando a imagem que quem não participa nestas festas, está ultrapassado ou fora deste mundo. É máquina do entretenimento.
Mas no centro deste fenómeno está a internet, esse poço sem fundo de informação, onde encontramos tudo já feito e pronto a consumir. Em troca dos nossos dados a quase tudo podemos aceder, mergulhando num mundo virtual que constitui a mais poderosa máquina de entretenimento jamais concebida: música, vídeos, jogos e notícias variegadas (entre outras, sobre dietas, cultura física, viagens, animais em casa, hortas na varanda, moda, a vida de figuras das televisões ou festas), etc. Numa palavra, entretenimento.
O resultado de tudo isto, parece-me, é uma confusão entre real e virtual. Para muitas crianças, os frangos nascem no supermercado; para se ter um automóvel ou até uma casa, não se poupa: vai-se ao banco, pois uma qualquer engenharia financeira proporcionará tal milagre. Hoje, o real é algo que muitos até acham uma perda de tempo.
Podia agora dissertar sobre esta sociedade de entretenimento, emitindo um juízo de valor. todavia não o farei. Prefiro, enquanto professor, dar o seguinte exemplo. Hoje, na universidade encontramos jovens que são excelentes nas tecno-logias de informação; muitos são bons ou muito bons em matemática e inglês, pilares fundamentais para construção do sucesso académico. Porém, nada sabem sobre a economia nacional ou sobre o tecido empresarial; em regra, não apreciam história e pouco sabem de geografia; não costumam conhecer as principais correntes da filosofia, que enformam as opções políticas. Aliás, política e políticos é algo amiúde catalogado de forma pouco edificante. Contudo, são barras em informática e dominam com facilidade o mundo do entretenimento baseado na internet.
Isto é bom ou mau, certo ou errado? Conseguirá a sociedade do entretenimento ter pilares para manter a democracia, a liberdade, o respeito pelos direitos dos outros, assente num mundo de entretenimento?
Termino com duas frases do pensador George Steiner: “o que receio em relação aos mais novos, é que por causa de uma obsessão com os média artificiais, tenham pouco entusiasmo pelas experiências genuinamente criativas”; e “o terrível é quando as pessoas não se prendem a nada, ao vazio”.

Helder Carrasqueira

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