AVARIAS: Oliveira no país das maravilhas

Vejo “Vale Abraão ” de Manoel de Oliveira, parece que numa versão definitiva, fora dos cortes exigidos por um festival, penso que o de Cannes: é muito parece e muito penso, mas de momento é o que se pode arranjar. Fiquei a saber pelas minhas leituras na santa internet, que em tempos tinham feito uma truncagem, aparentemente à revelia do realizador e mesmo contra o realizador, diminuindo o original em oitenta minutos. O objectivo seria o de passar de três para duas horas no total (+ ou -). Aparentemente os jurados pensaram que, mesmo estando frente a uma obra-prima, talvez não fosse má ideia reduzir a quantidade de grandes planos de cento e oitenta para cento e vinte minutos, mais coisa menos coisa. Não digam a ninguém, não consegui ver toda a fita, mas a hora que estive frente à televisão, confirmou-me tudo o que pensava do cinema de Oliveira. Aliás, a verdade é que como aqueles realizadores americanos que só sabem fazer filmes em que metade do tempo é passado em perseguições automóveis, o cinema de Manoel de Oliveira é sempre uma bênção para o seu espectador. Não para o espectador médio, se é que existe tal coisa, mas para todos os indefectíveis de cenas em que carruagens demoram dez minutos a fazer um certo trajecto (realidade), no filme vão levar doze. A carruagem lá está – pode ser um barco no rio, um olhar de criança – durante todo o tempo que pode demorar, mais dois minutos. Quando escrevo carruagem posso dizer muitas outras coisas ou pessoas. Em certa medida parecem sempre ser filmes de um tempo que já não existe, lento e sempre devedor da literatura. “Vale Abraão” alonga-se ao som de uma voz off que, tim tim por tim tim, reproduz a escrita de Agustina Bessa Luís e nos vai encaminhando não fossemos nós não perceber o argumento. As imagens são apenas pano de fundo para as palavras. Trata-se de uma linguagem muito própria e muito relacionada com um certo cinema português que a partir dos anos sessenta tudo imolou à sua volta; por isso o ódio do grande público que não se revê aqui. É de um cinema bilhete postal que falo, esteticamente muito belo, mas sempre demasiado fascinado consigo próprio. Vejo-o com a curiosidade que voto aos produtos que não se inscrevem na grande mediania dos tempos modernos, mas por muito que me esforce não consigo simpatizar com o resultado final. Afinal de contas este é um cinema que não deixa ao espectador nenhuma escapatória: como se rege por critérios de grande seriedade artística, não nos deixa espaço para dizer, não gosto, ou, é uma treta. Porque falamos em arte e não em indústria, ou gostamos ou somos parvos/estúpidos/incultos. A direcção de autores é propositadamente teatral e algumas cenas resultam tão artificiais que se não o pensarmos assim, podemos começar a pôr em causa a qualidade da representação. No final ficam-me sempre duas ideias:1 – Não tem pingo de humor, e quando o tem, é parvo. Por exemplo João César Monteiro era mais descomprometido e ria-se de si próprio. 2 – Não tem uma réstia de emoção, mesmo nas cenas em que ela parece presente. Se calhar é propositado. Mas também como nos jogos de futebol que me deixam de interessar, mudo de canal ou volto ao livro que estava a ler.

Fernando Proença

 

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