AVARIAS

Também tenho direito a um pequeno preconceito

 

Vejo televisão em todo o lado para onde me volto, nos restaurantes, cafés, só falta em grandes ecrãs no meio da rua. Mas já não falta muito. E nas televisões para onde hoje (e já agora ontem e anteontem. Escrevo no final da tarde de Domingo) espreito só descortino futebol e atentados de Paris. E é sobre os atentados e suas consequências que me ponho a pensar (às vezes ponho-me a pensar) em coisas que não interessam a ninguém, como por exemplo: se as eleições legislativas fossem agora (ou seja, depois dos atentados de Paris) a esquerda teria a maioria que obteve em Outubro? Ou se a tivesse, teria, com um elevado grau de probabilidade menos uns milhares de votos? Não sei de ciência certa, não tenho capacidade para usar os meus poderes de magia branca e a preta (magia) tem dias. No entanto tenho um dedo (o mínimo, mão direita, ao fundo do braço, contorna-se a mão e está-se lá) com grandes capacidades de adivinhação que me diz que sim, a esquerda perderia votos. Problemas com árabes, atentados à bomba depois da onda de refugiados têm, ao fundo do túnel em que se vai transformando a nossa vivência perante quem nos quer eliminar, o condão de fazer acender (ou reacender) a chama das pequenas intolerâncias que preenchem os ciclos da nossa vida. E que em determinada altura circulam em vazio: quando vamos ruminando questões como, se os refugiados o serão na sua totalidade apenas isso, refugiados; se o permitir a entrada de quem pode ser muito intolerante para com os nossos princípios civilizacionais não será uma bomba ao retardador, pronta a explodir mais cedo ou mais tarde. É exactamente isso que faz a extrema direita. De tempos a tempos acena-nos com a necessidade de nos autoexcluirmos da convivência com o outro, principalmente quando pensamos um pouco mais nos nossos medos. Mas também é aqui que a esquerda podia fazer um pouco mais: o de não tentar, por sistema, compreender e perceber tudo. Já se passou com o Charlie Hebdo, há passar-se agora: depois da comoção dos primeiros tempos e da responsabilização de quem deve ser responsabilizado (os árabes assassinos, e os restantes assassinos, árabes ou não), alguns inventam por confusão nas sua cabeças, mas principalmente por medo, que afinal de contas os culpados estão no lado de cá, e que, o assassínio indiscriminado é um atitude não perfeita, mas perfeitamente aceitável. É verdade que com o caso Charlie Hebdo o ocidente tinha ali um Calcanhar de Aquiles: há sempre – a respeito de malta que relativiza o sagrado das religiões e que prefere rir de todos os poderes – alguém capaz de defender uma concepção mais musculada da democracia, ao mesmo tempo que lembra o carácter dissoluto das nossas ideias sobre moralidade e o papel da mulher na sociedade. Desde que descobri que escritores como Teju Cole, Júnot Diaz (que muito prezava), Rachel Kushner e Peter Carey se opuseram à entrega do prémio anual do P.E.N Club ao hebdomadário gaulês Charlie Hebdo, que nem olho para os seus livros nos escaparates. É uma parvoíce minha e um pequeno preconceito a que talvez eu tenha direito.

Fernando Proença

 

Deixe um comentário

Exclusivos

Realidade algarvia afeta saúde mental dos jovens

Atualmente, a incerteza sobre o futuro académico e profissional preocupa cada vez mais os...

Autarca de Tavira garante que Plano de mobilidade tem “as melhores soluções”

O estudo do Plano de Mobilidade Sustentável da cidade de Tavira, encomendado em 2019...

Extrema-direita é primeira força política na região

A vitória do Chega no distrito de Faro, com 27,19% dos votos, foi a...

Água lançada ao mar pelo Alqueva daria para encher barragens algarvias

A Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva (EDIA), com sede em Beja, anunciava...

Deixe um comentário

Por favor digite o seu comentário!
Por favor, digite o seu nome

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.