A República

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Colaboradora. Designer.

Dedico o apontamento à memória de meus pais: À mãe Beatriz e ao pai Manero, sempre presentes no pensamento, com profunda saudade e admiração. Grato pelos valores transmitidos… Pela verticalidade que sempre demonstraram; pelo amor e união, que ao longo dos anos a Família consegue manter vivo. A República é uma história verídica, vivida na idade do bibe e do calção, dos anos da inocência. No entanto passaram oitenta e quatro anos e a imagem continua presente.
– O tempo corre depressa, quando nos apercebemos a mocidade passou. Acontece com os que vão somando anos na agenda da vida, que folheamos, fixando-nos em registos, anotações, que nos trazem saudades, recordações, com as quais vivemos de forma religiosa. Desfiamos as contas do rosário com gestos decorados e devotos, vendo desfilar imagens, que nos foram queridas, determinantes no prosseguimento, com as quais interrompemos o diálogo, impossível de retomar.
Se a memória não atraiçoa estávamos no ano de 1940. Duma família numerosa, como era normal, contavam-se seis filhos repartidos pelos dois sexos. O chefe, ex-combatente da guerra de 1914, secretário de finanças, pensava no futuro dos filhos. O tempo era de dificuldades. A mãe, dada a leituras, tinha a sua forma de estar e ver o mundo. O pai tinha feito uma guerra mas foi sempre um homem de enorme coração. Mais tarde havia de recordar e compreender – a forma, a subtileza -, o que a mãe dissera, era ainda adolescente, no seu saber de mãe: – Teu pai é um democrata de esquerda… Por que o teria dito…
Cedo comecei a ouvir em casa a “doutrina de ismos”. Convictamente a distância do salazarismo. O pai desceu à cova levando na lapela do casaco a cruz de guerra. Repousa em Beja no talhão dos Combatentes da Grande Guerra. Deixou à viúva (e aos filhos) a demarcação do regime. Era assim a Pátria “piolheira”, distinguida pelo monarca (D. Carlos) quando de regresso de ausências do país. Teve o fim triste… Mas agora estávamos numa República que não admitia vivas sendo reprimidas com a prisão.
No cais, em Mértola, onde atracava o “gasolina” do Dr. Emydio Lima – era conhecido o barco que fazia o percurso pelo rio até Vila Real de Santo António e o regresso, aproveitando as marés para ganhos de combustível -, os amigos da família despediam-se e choravam. Todos choravam. É distinto e humano compreender, recordar factos, sem os atribuir a uma dádiva, de um poder sobrenatural (…), quando a vida já vai longa e as faculdades fenecem. As partidas do tempo não apagaram da envelhecida memória – que nos transporta a distâncias remotas -, momentos vividos com forte intensidade e emoção -, despidos de artificialismos.
O “gasolina” apita uma, duas, três vezes. Lentamente afasta-se do cais onde os amigos permanecem. Sentia o coração bater apressadamente. Mértola ia ficando distante. As margens do rio também se afastavam mostrando a surpresa, trazendo as interrogações, os medos, que a criança não sabia definir. A marcha lenta do”gasolina”, o trabalhar monótono do motor, o escuro com o cair da noite, apressava o desejo de chegada a terra desconhecida. Onde fica repetia olhando para os meus irmãos, que se quedavam mudos, sem disfarçar alguma ansiedade. Tantas recordações e tão recente a partida duma terra, que nos marcou pelas virtudes da sua gente, pela lealdade dos amigos, cuja presença física não iríamos ter.
A mãe tinha dado um embrulho recomendando que tivesse cuidado. Quando o barco iniciou a viagem deixei-o cair no convés. Toma cuidado… Vê lá… Parecia ouvir a mãe. Lembrava a queda do embrulho, que agarrava com redobrado cuidado. Que levo aqui de tanto valor, pensava pondo os sentidos da inocência em sobressalto. A viagem terminou e os receios desapareceram. Tinhamos chegado ao destino. Em Vila Real de Santo António a família cresceu. Na nova casa começaram os preparativos, a exposição de embrulhos, as arrumações, dando-lhes feitio, mantendo a expectativa de ver o desenrolar do embrulho, que acompanhou os meus medos e receios. Um aaah! prolongado, de consternação, fez-se ouvir, com os olhos da mãe a procurarem os meus olhos. Limitei-me, instintivamente, ao encolher de ombros. A República, simbolo que democratas faziam por ter em casa e se escondia com receio de interpretações (…), tinha a cabeça degolada, (tronco para um lado, cabeça para outro).
Continuo a pensar, na distância do tempo, como teria sido grave para a República, se não tivessem conseguido dar-lhe a forma colando-lhe a cabeça.

António Gil

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